segunda-feira, 22 de janeiro de 2018

UM EPISÓDIO MÁGICO OU ESTRAMBÓTICO





Em pé, encostada na parede, os outros estavam deitados no chão, ou melhor, quem estava deitada era eu e os outros em pé, encostados na parede. Espera aí, vou organizar este pensamento. Uma lembrança dos anos 80, que me veio agora. Vamos lá.
Às vezes me bate uma vontade de remexer nas histórias, como se eu estivesse misturando os ingredientes secos de um bolo com as mãos e desta maneira as imagens que estão esquecidas vêm à tona e as que estavam por aqui, na beira do raciocínio, desaparecem. Mistura, mistura, as imagens unem-se às palavras e formam uma narrativa. Uma narrativa mixada com a vida de agora.
Estava muito frio e vestíamos tocas, suéteres, meias até o joelho, calças jeans, de moletom ou de lã. Nossa! Bastante frio fazia em Visconde de Mauá. Uns oito amigos juntos na casinha, no Vale do Pavão. Histórias sendo contadas, risos, brincadeiras e tudo o mais que você possa imaginar… Vida, alegria, juventude! Cobertores, mantas, colchonetes. No chão, estávamos recostados. Eu estava em pé, eles, deitados; não, eu deitada… ah! Não lembro ...
Faltava cigarro – fumávamos todos, isto é, todos fumávamos – Uma impaciência e uma procura pelo tal do cigarro. Ninguém tinha mais. Acabara. Saíram para procurar cigarros, além de ver se qualquer cidadão que passasse pela estradinha que levava à cachoeira – o que seria difícil - poderia nos ceder algum.
Fiquei dentro de casa, na sala. Deitada e com muito frio. Passaram uns minutos e...
- toc, toc, toc. Escutei bater na porta.
- hum, entra aí, não vou levantar, está muito frio. Eu disse.
- toc, toc, toc, hi, hi, hi. Umas risadinhas do lado de fora, eu ouvi.
- aí, quem é? Perguntei.
- hi, hi, hi. Mais umas risadinhas e um silêncio…
A lua toda brilhava nas matas, estava em seu auge, bem no meio do céu. Uma bola linda amarela iluminava o terreno onde ficava a casinha e iluminava a estrada também. Tudo claro e mágico.
Levantei, abri a porta, olhei e vi, correndo para a mata, uns personagenzinhos de gorro colorido e baixinhos. Sumiram. Incrível como desapareceram tão rápido…
Uau! Fiquei pensando quem eram aqueles seres tão bonitinhos e tão ligeiros. Lembrei das travessuras contadas em histórias de encantamentos para crianças.
A lua e a rua estavam lindas. Um brilho retocava alguns arbustos. A noite criava um ar misterioso na mata.
Esperei mais um cadinho e nada daqueles personagens. Fiquei um pouco na varanda, onde havia uma gostosa rede. Olhei para a porta e - qual não foi minha surpresa? - uma porção de cigarros estava no chão pertinho da entrada.

- Ué! Quem deixou isso ali? Falei sozinha.
Fui lá e peguei os cigarros. Uns dez, devia ter. Pulei de alegria, só que não entendi nada, nada mesmo. Entrei e fiz fumaça, né? Guardei para os outros que já demoravam. Eles foram retornando aos poucos. E quando
todos já estávamos juntos e eles se diziam decepcionados porque não conseguiram o que foram tentar trazer, então, eu contei para eles o ocorrido e fiz a distribuição dos cigarros. Duvidaram de mim, não acreditaram em nada que contei.
Se fumaram os cigarros? Fumaram.
Mauá era pouco conhecida e não existiam muitas pousadas como existem hoje. Estradinha de barro, a partir da divisão para Penedo. Terra batida até lá: na vila de Mauá.
Ao chegarmos víamos logo a igrejinha e o campo de futebol, logo ali a vila. Uma rua com um comércio simples: bar com mesa de sinuca, alguma loja de roupa e não me lembro o que mais. Um pouco a frente e estávamos no assim chamado lote 10. Mais casas e mais comércio. Para um lado, íamos em direção à Pedra Selada e, para o outro, Vale do Pavão e Maringá.
Andávamos tudo a pé, sem cansaço. Uma carona ou outra... por um trecho... até ali... mais a frente. E continuávamos a pé. Felicidade e simplicidade! Rolling Stones, Chico, Milton, íamos cantando pelas estradinhas: My sweet lady Jane, when I see you again… Como a música nos remete às vivências que tivemos! A música traz em si uma divindade cósmica.
He! He! He! De repente, agorinha, me vi caminhando por Mauá e cantando. É... caminhando e cantando… Em cada esquina um dedilhar de violão e uma voz ou várias vozes: todo artista tem de ir aonde o povo está, e foi assim e assim será...
Naqueles dias, tive de aturar meus amigos falarem sobre o assunto dos cigarros exaustivamente. Os duendes (!!??) não voltaram mais para comprovar a minha história. E trago comigo aquele lembrança encantadora e generosa ocorrida naquela noite de lua cheia.
A propósito, hoje em dia, não fumo mais e talvez não mais veja duendes em minha vida. Uma coisa é certa, fiquei com a fama de ter escondido os cigarros da rapaziada para depois dar aquela desculpa estrambótica (na opinião deles, é claro).


Obs: AS FOTOS SÃO DA INTERNET (GOOGLE)

quarta-feira, 3 de janeiro de 2018

VIVER PARA CONTAR - RESENHA




Gabriel García Marquez, escritor colombiano, Nobel de Literatura pelo conjunto da obra, inicia a contação de parte da história de sua vida com uma frase sobre a vida e de como lembramos dela para contar (p.5):
A vida não é a que a gente viveu, e sim a que a gente recorda,
e como recorda para contá-la”.
Dá ênfase ao fato de que contamos as histórias de nossa vida do modo como as recordamos e não necessariamente como os fatos aconteceram.
Em primeira pessoa, a narrativa de García Marquez é fluida e bela.
A edição que li, a 11ª, lançada pela Editora Record, é uma tradução de Eric Nepomuceno, o que, quer queira quer não, já envolve uma parcela de coautoria do tradutor. Por mais fiel que ele seja à obra, não existe tradução sem o mundo (vocabulário, interpretação etc) do tradutor estar envolvido.
O autor conta sobre a infância e a juventude. Diz da cidade em que nasceu Aracataca, na Colômbia, em uma família grande, com muitos irmãos, uns quinze; fala da importância dos avós, da força de sua mãe e do espírito aventureiro de seu pai. Conta sobre suas relações amorosas e algumas furtivas.
Com um perfeito manejo do tempo, inicia a história em um acontecimento já a frente. Em algumas vezes retorna para antes ou se adianta para além do que está contando, entretanto, não confunde o leitor. Torna clara a lembrança ou o comentário de um momento anterior ou posterior.
A narrativa é dividida em 8 partes, sem título, apenas um ordenamento. Inicia com a mãe dele chegando a Barranquilla e o procurando para juntos venderem a tal casa, a casa dos avós em Aracataca. Descreve a mãe naquele momento com 45 anos. Conta nos primeiros capítulos, sobre sua infância, fala da família, tios, avós, e um pouco de história imaginada através das histórias que a ele foram contadas. Durante os capítulos seguintes, apresenta ao leitor os autores que leu naqueles períodos de vida, como Kafka, James Joyce, William Faulkner, John dos Passos, Virginia Woolf, John Steinbeck, Jorge Luis Borges, os quais serviram de ensinamento para a carreira de escritor que foi acontecendo após iniciar os estudos em Direito e não terminar, enredar pela carreira de jornalista por meio de amigos e dos textos que sempre gostou de escrever e das reportagens que realizou tão bem, segundo seus relatos.
Gabo como é conhecido, até hoje, entre amigos, pareceu não se importar muito com a instrução escolar básica, embora tenha se saído bem e até adquirido a fama de poeta. Gostava bastante de ler e escrever o que, sem sombra de dúvidas, confirma a sua vocação para escritor. Participava de reuniões e muita conversa boa em mesas de bar com amigos e intelectuais.
Viveu momentos importantes da história de seu país, a Colômbia, nos meados do século vinte. Cita Bogotá, Barranquilla, Cartagena. A partir desses relatos, o livro nos ensina sobre os acontecimentos políticos, guerras civis, mudanças de poder, em que posso afirmar que Viver para contar tem um pano de fundo histórico. A obra literária e a história sempre de mãos dadas com o fim maior de agregar conhecimento.
Poucas foram as páginas que me vi cansada de ler e querendo parar um pouco. O autor atrai o leitor com suas figuras de linguagem, faz uso magistral dos adjetivos  levando a sentimentos diversos e mixados, um cruzamento de sensações; a sinestesia presente em sua narrativa encanta a todos: beleza incômoda (p. 306), árvores sonsas (p. 274), esbelta e sigilosa (p. 179), véu inquebrantável (p. 179), tetas siderais e crânio de abóbora (p. 355), timidez de codorna (p. 355), xícaras mortais de café (p. 458), cigarros ferozes (p. 458). Uma linguagem figurativa e sensitiva. Observe esta descrição: “...casas desenterradas desde a raiz e arrastadas pela correnteza das ruas, e enfermos solitários que se afogavam em suas camas.” (p. 295) sobre uma chuva torrencial que caíra em Barranquilla. Peculiar é a tendência ao que não é real, única e exclusivamente, um toque de fantástico sempre há de ter. Algo a mais nas entrelinhas.
Gabo e as mulheres, algumas ele cita o nome, como Trinidad, Matilde e Mercedez Bacha, que foi a mulher de sua vida, com quem casou e teve filhos….; amores furtivos e alguma traição sem mal nenhum no conhecer de um jovem rapaz. A mãe Luisa (o nome está sem acento no livro) sempre atenta aos filhos dela (onze) e de outras mulheres (quatro) com quem o marido se relacionou, sabia dos amores do filho e se preocupava. Fala dos irmãos, mais de uns do que de outros. E cita alguns amigos famosos, entre eles Fidel Castro, ainda líder estudantil, que conheceu no início da existência e se tornou amigo.
Durante toda a narrativa o autor tece comentários a respeito do fato de ele gostar de escrever. Só alguns exemplos: escrever para não morrer, graças a ele vou ser escritor,… e nada mais que escritor, foi também o avô que me fez contato com a letra escrita…
A metalinguagem é outro fator presente na narrativa e seduz por nos proporcionar entender um pouco das técnicas e métodos usados por ele para escrever. Na p. 342, comenta sobre o sobrenome Buendía que veio a fazer parte de seu livro Cem anos de solidão: “… estive muitas vezes a ponto de dispensar a palavra Buendía por sua rima inevitável com os pretéritos imperfeitos”.
A produção gráfica do livro é simples, a capa com guarda e cabeceado - o que proporciona uma melhor abertura -, encadernação do tipo brochura, tamanho 23x16, 476 páginas, em papel off-white.
Gabriel García Marquez mais uma vez encanta os leitores. Viver para contar é um livro interessante, curioso e belo. Uma biografia escrita pelo biografado. Como se fosse um guia de sua obra em sua vida.


  A angústia de um pesar      Durante a madrugada me vieram lembranças. Um tanto quanto estranha a minha alma estava que, ...