
Cheguei
ao local, parei o carro e fiquei a observar do lado de fora. Parecia
uma casa bonita por trás do muro. Entrei no albergue. Tinha um
aspecto simples, em terreno plano gramado, uma piscina e uma horta
pequenina, onde um missionário evangélico chamado Jonas acolhe
moradores de rua. Um trabalho honrado.
Conheci
o Albergue Mateus 25:35 por intermédio da Plataforma Transforma
Petrópolis no ano 2016. Um modo de as pessoas fazerem conexão
entre quem precisa de ajuda e quem deseja ajudar. Neste trabalho
voluntário, inscrevi-me como professora de Língua Portuguesa. Após
a graduação, lecionei em comunidades carentes e adquiri experiência
em recolocação de pessoas em sociedade.
Então,
ao ser contatada pelo albergue para alfabetização de moradores de
rua, conversei com o administrador, à época, o Sérgio, que também
sofrera as dores do abandono. Disponibilizei-me a ajudá-los.
Aos
poucos, fui conhecendo eles melhor. Eram só homens. Rejeição,
desconfiança, drogas, alcoolismo, revolta, agressividade, dor na
alma. Um desafio, já que é um mundo bem diverso e inconstante.
Recebi
do administrador uma síntese do perfil de cada ex-morador de rua
presente no Albergue Mateus. Naquele dia eram sete. Comecei a minha
encantadora missão de alfabetizá-los.
Na
primeira aula, eles foram chegando paulatinamente. Olhares
desconfiados e taciturnos. Devia ter uns nove. Alguns ficaram do lado
de fora, varrendo, cortando grama ou mesmo sentados quietos, a olhar
para dentro de si. Fiz a apresentação de todos e ouvi um pouquinho
de cada um. Apresentei uma dinâmica em que desenhavam o próprio
rosto, escreviam o nome e suas preferências, assim consegui observar
como eram em relação aos gostos e ao uso da escrita. A um deles
pedi que escrevesse os números de um a nove e cortei cada número,
dobrei e pedi que tirassem da cumbuquinha que fiz com minhas mãos.
Eles souberam seguir a numeração para responder as perguntas
feitas. Uns falavam muito, outros riam, outros ficavam em silêncio.
Aparentemente desconfiados. Avaliei o conhecimento inicial de
números. Todos tinham.
No
meu segundo encontro com eles, já faltava um. - Foi embora! Eles
disseram. Observei que, praticamente, todos eram alfabetizados,
contudo havia tempos não tinham contato com uma sala de aula e menos
ainda com caderno ou livros. Apenas e diariamente com a leitura da
Bíblia feita por alguns envolvidos no evangelho. Em situações
difíceis de nossas vidas precisamos de fé.
Devagar
e com jeito consegui a participação deles em dinâmicas de grupo,
ditados populares, caligrafia, e leitura por quem quisesse ler.
Extremamente feliz com essa missão, passei a pesquisar sobre
alfabetização e letramento. Paulo Freire, apostilas de Educação
de Jovens e Adultos, Magda Becker Soares.
Em
uma das aulas, levei a letra da música Enquanto houver sol, dos
Titãs. Lemos, falamos sobre, fizemos exercício de interpretação
das estrofes. Antes, coloquei-os a par do que são versos e estrofes.
E, por fim, pus a música para tocar. A minha felicidade foi imensa
quando eles cantaram junto com os Titãs.
As
aulas foram acontecendo. Falava sobre o alfabeto, as vogais, as
consoantes. A letra cursiva, a letra de imprensa. Eles começaram a
se mostrar interessados. Frequentemente eu levava música para
ouvirmos, o que era bom e proveitoso. Sempre saía de lá com o
coração agradecido pela oportunidade.
Alguns
alunos novos chegavam vez em quando, devido às complicações
da vida e, do mesmo jeito que os
outros, tinham quadro de dependência de alguma droga. O álcool era
a mais frequente e a mais difícil de se livrar, principalmente, por
estar à disposição de todos.
Uma
vez por semana eu ia lá. Como era um albergue, acontecia uma certa
rotatividade. Não havia uma sequência do aprendizado. Em um dia eu
tinha dez, doze alunos, em outra semana apareciam dois, três,
quatro, que moravam lá. O missionário Jonas e o administrador
Sérgio faziam a gentileza de participar algumas vezes.
Conheci
a história daqueles com quem mais convivi. Em cada olhar de
confiança e amizade que eu descobria, a minha história de vida ia
sendo acrescida de bondade e me dando a certeza de que não podemos
virar as costas para as pessoas necessitadas de apoio moral e
sentimental.
Cheguei
a me interessar pelo trabalho de Nise da Silveira, psiquiatra,
nascida em Alagoas, que revolucionou o tratamento psiquiátrico. Ela
levava em conta a riqueza da alma dos seres humanos estigmatizados
pela chamada loucura. Os ex-moradores de rua com quem lidei
expressavam uma vontade desmedida de serem bons homens, mas tinham
fardos para carregar. Aprendi bastante com eles, certamente mais do
que eles comigo. Foi só um tempo, visto que as situações se
transformaram e nada estava como era antes. Nem a minha vida nem a
vida do albergue - por ser um albergue - e o objetivo a que eu me
propusera também se diluiu. Avisei que iria sair e ficamos tristes.
De
quando em quando, lembro deles e de nosso relacionamento. Preocupo-me
com o destino daqueles que por mim passaram e penso naqueles que para
lá vão, saem e voltam, porque nada nessa vida é definitivo muito
menos a vida dos que vivem a necessidade de serem acolhidos.