segunda-feira, 13 de janeiro de 2020

SINTO VERGONHA…




Domingo. Pede cachimbo, dizia minha vó materna. As tradições de família, as lembranças do jeito de ser das pessoas… Foi em um domingo, um desses, estive em um evento literário em Petrópolis. E um momento me transformou. Sei que a literatura tem o poder de iluminar as mentes. Um livro pode fazer grandes alterações em nossa forma de enxergar a vida.
O mote do bate-papo era a antologia Negras Crônicas : escurecendo os fatos. O assunto era mulheres negras e suas vivências. O livro contém umas quarenta narrativas que dizem respeito a uma quantidade significativa de experiências ruins vividas pelas autoras publicadas.
Eu participava da roda de conversa e duas das autoras, que estavam presentes, começaram a falar sobre o livro, sobre o edital e sobre a publicação. Todavia, o assunto que tomou vulto, e não poderia ser diferente, foi a questão do racismo.
Em depoimentos bastante emotivos e indignados elas apresentaram as suas relevâncias.
Costumo fazer de minha trajetória uma jornada de aprendizado e procuro sempre melhorar como ser humano. Aos poucos, apesar de ouvir absurdos sobre os negros durante minha vida, eu passei a ter o meu próprio pensamento a esse respeito e já há bastante tempo que tirei de mim o sentimento de inferioridade que pessoas sentem pela população afrodescendente. Olhares de desdém, por mais que tenham instrução, competência e sabedoria.
Carregam um passado nas costas assim como todos nós carregamos. Porém, um passado que se mantém na cor da pele até hoje e machuca.
A conversa continuou bem acalorada. As autoras que lá estavam, mulheres cultas e bem articuladas, conduziram o assunto racismo com conhecimento de causa. A mais jovem com força no olhar e muita vontade de construir uma outra vertente dessa história de escravidão e subserviência que se mantém atual, por mais luta que haja. A mais madura com excelente performance elocutiva parecia ter no olhar mais tristeza e, devido à vivência acumulada, carregar mais decepções. Um acontecimento único em minha vida, porque até então ainda não tinha presenciado esse tipo de fala. É muito diferente assistir a entrevistas na TV, ou ler nos jornais e nas mídias de todos os tipos.
Apesar do respeito ao assunto e do meu interesse pelo que estava acontecendo, eu, como editora, tinha a curiosidade de saber sobre o que cada uma delas havia falado no livro. Quais as histórias que contaram. Eu gosto de ouvir histórias. Pensei em interromper, não foi possível. Fiquei na posição de logo que desse eu faria uma pergunta. Quando então alguém se manifestou sobre se devemos falar ou não o assunto e como é delicado tocar nas feridas das pessoas. Foi aí que eu aproveitei. Em um comentário muito breve e ingênuo disse que, em minha opinião, deve-se deixar pra lá, não ficar falando do comportamento antiético das pessoas, não é bom reforçar o negativo. Pensava que, simplesmente, se a discriminação racial nunca mais fosse lembrada, poderia acabar e se dissolver no ar.
Descobri que não é bem desse jeito.
Elas viraram para mim e, em um rompante, disseram mais ou menos assim:
- não, não devemos deixar para lá. Temos de falar o que acontece. E as outras pessoas devem nos ajudar e devem ir de encontro ao comportamento racista.
Embora um pouco sem graça, resolvi não me defender e apenas as ouvi. Uma outra moça também de pele negra se manifestou e apoiou a maneira de se revoltar dos jovens, do uso dos cabelos soltos, do orgulho de ser negro. O que eu também apoio. Eu pensei, mas não disse. Não consegui dizer.
Por fim, perguntei a respeito do que tinham escrito no livro. Uma delas contou sobre um passeio que fez com conhecidos em uma fazenda do Vale do Café. Ao visitarem a senzala, existia uma representação bem real, em cera, de negros presos e acorrentados, como se estivessem mesmo sangrando, em tamanho natural. Ela disse: doeu na pele! E ainda acrescentou que um menino negro, visitante, começou a chorar. A partir desse relato, ainda contaram mais um bocado das histórias de discriminação.
Alguns exemplos de outros países foram lembrados, em que as pessoas têm vergonha do acontecido, como o holocausto, na Alemanha, por exemplo. Aqui, no Brasil, parece que uma parte da população orgulha-se da escravidão e do que aconteceu naquelas épocas. Fora ofensas, ironias e comentários desagradáveis de alguns.
Pois é, naquela hora, um silêncio se instalou em mim, fez-me refletir mais ainda sobre a discriminação racial e de qualquer outro tipo. Aprendi que não basta só não pensar como pessoas racistas, é preciso agir. É necessário combater essa prática tão presente em nosso país. Reagir e dizer que sinto vergonha daquele comportamento de época, e repudiar de modo veemente atitudes ainda tão cruéis e semelhantes da nossa sociedade atual.
Recentemente, já modificada por aquela conversa, fui visitar uma cidade do Vale do Café: Vassouras. Estou fazendo uma espécie de tour particular em algumas dessas cidades. Eliminei as imersões às fazendas de café. Não me interesso mais por lugares de luxo e riqueza que existiam e se desenvolviam por intermédio de exploração, sofrimento e humilhação.
O livro Negras Crônicas foi escrito por mulheres negras e revelou talentos. Algumas histórias chegam a enojar de tão deprimente que é o ser humano sem noção de nossa pequenez. Mulheres fortes e trabalhadoras, estudiosas, mães, filhas, tão iguais a todas nós. Vale a pena ler para conhecer as escritoras e também sentir vergonha de fazer parte de uma sociedade tão ridícula e sórdida, nesses aspectos.

  A angústia de um pesar      Durante a madrugada me vieram lembranças. Um tanto quanto estranha a minha alma estava que, ...