quinta-feira, 12 de julho de 2018

UMA ENCANTADORA MISSÃO


Cheguei ao local, parei o carro e fiquei a observar do lado de fora. Parecia uma casa bonita por trás do muro. Entrei no albergue. Tinha um aspecto simples, em terreno plano gramado, uma piscina e uma horta pequenina, onde um missionário evangélico chamado Jonas acolhe moradores de rua. Um trabalho honrado.
Conheci o Albergue Mateus 25:35 por intermédio da Plataforma Transforma Petrópolis no ano 2016. Um modo de as pessoas fazerem conexão entre quem precisa de ajuda e quem deseja ajudar. Neste trabalho voluntário, inscrevi-me como professora de Língua Portuguesa. Após a graduação, lecionei em comunidades carentes e adquiri experiência em recolocação de pessoas em sociedade.
Então, ao ser contatada pelo albergue para alfabetização de moradores de rua, conversei com o administrador, à época, o Sérgio, que também sofrera as dores do abandono. Disponibilizei-me a ajudá-los.
Aos poucos, fui conhecendo eles melhor. Eram só homens. Rejeição, desconfiança, drogas, alcoolismo, revolta, agressividade, dor na alma. Um desafio, já que é um mundo bem diverso e inconstante.
Recebi do administrador uma síntese do perfil de cada ex-morador de rua presente no Albergue Mateus. Naquele dia eram sete. Comecei a minha encantadora missão de alfabetizá-los.
Na primeira aula, eles foram chegando paulatinamente. Olhares desconfiados e taciturnos. Devia ter uns nove. Alguns ficaram do lado de fora, varrendo, cortando grama ou mesmo sentados quietos, a olhar para dentro de si. Fiz a apresentação de todos e ouvi um pouquinho de cada um. Apresentei uma dinâmica em que desenhavam o próprio rosto, escreviam o nome e suas preferências, assim consegui observar como eram em relação aos gostos e ao uso da escrita. A um deles pedi que escrevesse os números de um a nove e cortei cada número, dobrei e pedi que tirassem da cumbuquinha que fiz com minhas mãos. Eles souberam seguir a numeração para responder as perguntas feitas. Uns falavam muito, outros riam, outros ficavam em silêncio. Aparentemente desconfiados. Avaliei o conhecimento inicial de números. Todos tinham.
No meu segundo encontro com eles, já faltava um. - Foi embora! Eles disseram. Observei que, praticamente, todos eram alfabetizados, contudo havia tempos não tinham contato com uma sala de aula e menos ainda com caderno ou livros. Apenas e diariamente com a leitura da Bíblia feita por alguns envolvidos no evangelho. Em situações difíceis de nossas vidas precisamos de fé.
Devagar e com jeito consegui a participação deles em dinâmicas de grupo, ditados populares, caligrafia, e leitura por quem quisesse ler. Extremamente feliz com essa missão, passei a pesquisar sobre alfabetização e letramento. Paulo Freire, apostilas de Educação de Jovens e Adultos, Magda Becker Soares.
Em uma das aulas, levei a letra da música Enquanto houver sol, dos Titãs. Lemos, falamos sobre, fizemos exercício de interpretação das estrofes. Antes, coloquei-os a par do que são versos e estrofes. E, por fim, pus a música para tocar. A minha felicidade foi imensa quando eles cantaram junto com os Titãs.
As aulas foram acontecendo. Falava sobre o alfabeto, as vogais, as consoantes. A letra cursiva, a letra de imprensa. Eles começaram a se mostrar interessados. Frequentemente eu levava música para ouvirmos, o que era bom e proveitoso. Sempre saía de lá com o coração agradecido pela oportunidade.
Alguns alunos novos chegavam vez em quando, devido às complicações da vida e, do mesmo jeito que os outros, tinham quadro de dependência de alguma droga. O álcool era a mais frequente e a mais difícil de se livrar, principalmente, por estar à disposição de todos.
Uma vez por semana eu ia lá. Como era um albergue, acontecia uma certa rotatividade. Não havia uma sequência do aprendizado. Em um dia eu tinha dez, doze alunos, em outra semana apareciam dois, três, quatro, que moravam lá. O missionário Jonas e o administrador Sérgio faziam a gentileza de participar algumas vezes.
Conheci a história daqueles com quem mais convivi. Em cada olhar de confiança e amizade que eu descobria, a minha história de vida ia sendo acrescida de bondade e me dando a certeza de que não podemos virar as costas para as pessoas necessitadas de apoio moral e sentimental.
Cheguei a me interessar pelo trabalho de Nise da Silveira, psiquiatra, nascida em Alagoas, que revolucionou o tratamento psiquiátrico. Ela levava em conta a riqueza da alma dos seres humanos estigmatizados pela chamada loucura. Os ex-moradores de rua com quem lidei expressavam uma vontade desmedida de serem bons homens, mas tinham fardos para carregar. Aprendi bastante com eles, certamente mais do que eles comigo. Foi só um tempo, visto que as situações se transformaram e nada estava como era antes. Nem a minha vida nem a vida do albergue - por ser um albergue - e o objetivo a que eu me propusera também se diluiu. Avisei que iria sair e ficamos tristes.
De quando em quando, lembro deles e de nosso relacionamento. Preocupo-me com o destino daqueles que por mim passaram e penso naqueles que para lá vão, saem e voltam, porque nada nessa vida é definitivo muito menos a vida dos que vivem a necessidade de serem acolhidos.




  A angústia de um pesar      Durante a madrugada me vieram lembranças. Um tanto quanto estranha a minha alma estava que, ...