Gabriel García Marquez, escritor colombiano, Nobel de Literatura pelo conjunto da obra,
inicia a contação de parte da história de sua vida com uma frase
sobre a vida e de como lembramos dela para contar (p.5):
“A vida não é a que a
gente viveu, e sim a que a gente recorda,
e como recorda para
contá-la”.
Dá ênfase ao fato de que
contamos as histórias de nossa vida do modo como as recordamos e
não necessariamente como os fatos aconteceram.
A edição que li, a 11ª,
lançada pela Editora Record, é uma tradução de Eric Nepomuceno, o
que, quer queira quer não, já envolve uma parcela de coautoria do
tradutor. Por mais fiel que ele seja à obra, não existe tradução
sem o mundo (vocabulário, interpretação etc) do tradutor estar
envolvido.
O autor conta sobre a
infância e a juventude. Diz da cidade em que nasceu Aracataca, na
Colômbia, em uma família grande, com muitos irmãos, uns quinze;
fala da importância dos avós, da força de sua mãe e do espírito
aventureiro de seu pai. Conta sobre suas relações amorosas e
algumas furtivas.
Com um perfeito manejo do
tempo, inicia a história em um acontecimento já a frente. Em
algumas vezes retorna para antes ou se adianta para além do que está contando, entretanto,
não confunde o leitor. Torna clara a lembrança ou o comentário de
um momento anterior ou posterior.
A narrativa é dividida em 8
partes, sem título, apenas um ordenamento. Inicia com a mãe dele
chegando a Barranquilla e o procurando para juntos venderem a tal
casa, a casa dos avós em Aracataca. Descreve a mãe naquele momento
com 45 anos. Conta nos primeiros capítulos, sobre sua infância,
fala da família, tios, avós, e um pouco de história imaginada
através das histórias que a ele foram contadas. Durante os
capítulos seguintes, apresenta ao leitor os autores que leu naqueles
períodos de vida, como Kafka, James Joyce, William Faulkner, John
dos Passos, Virginia Woolf, John Steinbeck, Jorge Luis Borges, os
quais serviram de ensinamento para a carreira de escritor que foi acontecendo
após iniciar os estudos em Direito e não terminar, enredar pela
carreira de jornalista por meio de amigos e dos textos que sempre
gostou de escrever e das reportagens que realizou tão bem, segundo
seus relatos.
Gabo como é conhecido, até
hoje, entre amigos, pareceu não se importar muito com a instrução
escolar básica, embora tenha se saído bem e até adquirido a fama
de poeta. Gostava bastante de ler e escrever o que, sem sombra de
dúvidas, confirma a sua vocação para escritor. Participava de
reuniões e muita conversa boa em mesas de bar com amigos e
intelectuais.
Viveu momentos importantes da
história de seu país, a Colômbia, nos meados do século vinte.
Cita Bogotá, Barranquilla, Cartagena. A partir desses relatos, o
livro nos ensina sobre os acontecimentos políticos, guerras civis,
mudanças de poder, em que posso afirmar que Viver
para contar tem um
pano de fundo histórico. A obra literária e a história sempre de
mãos dadas com o fim maior de agregar conhecimento.
Poucas foram as páginas que
me vi cansada de ler e querendo parar um pouco. O autor atrai o
leitor com suas figuras de linguagem, faz uso magistral dos adjetivos levando a sentimentos diversos e mixados, um cruzamento de sensações; a sinestesia
presente em sua narrativa encanta a todos: beleza
incômoda (p. 306),
árvores sonsas (p. 274), esbelta
e sigilosa (p.
179), véu
inquebrantável (p.
179), tetas siderais
e crânio de abóbora
(p. 355), timidez de
codorna (p. 355), xícaras mortais de café (p. 458), cigarros ferozes (p. 458). Uma linguagem figurativa e sensitiva. Observe esta descrição:
“...casas
desenterradas desde a raiz e arrastadas pela correnteza das ruas, e
enfermos solitários que se afogavam em suas camas.”
(p. 295) sobre uma chuva torrencial que caíra em Barranquilla.
Peculiar é a tendência ao que não é real, única e exclusivamente,
um toque de fantástico sempre há de ter. Algo a mais nas
entrelinhas.
Gabo e as mulheres, algumas
ele cita o nome, como Trinidad, Matilde e Mercedez Bacha, que foi a
mulher de sua vida, com quem casou e teve filhos….; amores furtivos
e alguma traição sem mal nenhum no conhecer de um jovem rapaz. A
mãe Luisa (o nome está sem acento no livro) sempre atenta aos filhos dela (onze) e de outras mulheres (quatro) com quem o marido se relacionou, sabia dos amores do filho e
se preocupava. Fala dos irmãos, mais de uns do que de outros. E cita
alguns amigos famosos, entre eles Fidel Castro, ainda líder
estudantil, que conheceu no início da existência e se tornou amigo.
Durante toda a narrativa o
autor tece comentários a respeito do fato de ele gostar de escrever. Só alguns exemplos:
escrever para não
morrer, graças a ele vou ser escritor,… e nada mais que escritor,
foi também o avô que me fez contato com a letra escrita…
A metalinguagem é outro
fator presente na narrativa e seduz por nos proporcionar entender
um pouco das técnicas e métodos usados por ele para escrever. Na
p. 342, comenta sobre o sobrenome Buendía que veio a
fazer parte de seu livro Cem anos de solidão: “…
estive muitas vezes a ponto de dispensar a palavra Buendía por sua
rima inevitável com os pretéritos imperfeitos”.
A produção gráfica do
livro é simples, a capa com guarda e cabeceado - o que proporciona
uma melhor abertura -, encadernação do tipo brochura, tamanho 23x16,
476 páginas, em papel off-white.
Gabriel García Marquez mais
uma vez encanta os leitores. Viver
para contar é um
livro interessante, curioso e belo. Uma biografia escrita pelo
biografado. Como se fosse um guia de sua obra em sua vida.
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