Domingo. Pede cachimbo, dizia minha vó materna. As tradições de família,
as lembranças do jeito de ser das pessoas… Foi em um domingo, um
desses, estive em um evento literário em Petrópolis. E um momento
me transformou. Sei que a literatura tem o poder de iluminar as
mentes. Um livro pode fazer grandes alterações em nossa forma de
enxergar a vida.
O
mote do bate-papo era a antologia Negras
Crônicas : escurecendo os fatos.
O assunto era mulheres negras e suas vivências. O livro contém umas
quarenta narrativas que dizem respeito a uma quantidade significativa
de experiências ruins vividas pelas autoras publicadas.
Eu
participava da roda de conversa e duas das autoras, que estavam
presentes, começaram a falar sobre o livro, sobre o edital e sobre a
publicação. Todavia, o assunto que tomou vulto, e não poderia ser
diferente, foi a questão do racismo.
Em
depoimentos bastante emotivos e indignados elas apresentaram as suas
relevâncias.
Costumo
fazer de minha trajetória uma jornada de aprendizado e procuro
sempre melhorar como ser humano. Aos poucos, apesar de ouvir absurdos
sobre os negros durante minha vida, eu passei a ter o meu próprio
pensamento a esse respeito e já há bastante tempo que tirei de mim
o sentimento de inferioridade que pessoas sentem pela população
afrodescendente. Olhares de desdém, por mais que tenham instrução,
competência e sabedoria.
Carregam
um passado nas costas assim como todos nós carregamos. Porém, um
passado que se mantém na cor da pele até hoje e machuca.
A
conversa continuou bem acalorada. As autoras que lá estavam,
mulheres cultas e bem articuladas, conduziram o assunto racismo com
conhecimento de causa. A mais jovem com força no olhar e muita
vontade de construir uma outra vertente dessa história de escravidão
e subserviência que se mantém atual, por mais luta que haja. A mais
madura com excelente performance elocutiva parecia ter no olhar mais
tristeza e, devido à vivência acumulada, carregar mais decepções.
Um acontecimento único em minha vida, porque até então ainda não
tinha presenciado esse tipo de fala. É muito diferente assistir a
entrevistas na TV, ou ler nos jornais e nas mídias de todos os
tipos.
Apesar
do respeito ao assunto e do meu interesse pelo que estava
acontecendo, eu, como editora, tinha a curiosidade de saber sobre o
que cada uma delas havia falado no livro. Quais as histórias que
contaram. Eu gosto de ouvir histórias. Pensei em interromper, não
foi possível. Fiquei na posição de logo que desse eu faria uma
pergunta. Quando então alguém se manifestou sobre se devemos falar
ou não o assunto e como é delicado tocar nas feridas das pessoas.
Foi aí que eu aproveitei. Em um comentário muito breve e ingênuo
disse que, em minha opinião, deve-se deixar pra lá, não ficar
falando do comportamento antiético das pessoas, não é bom reforçar
o negativo. Pensava que, simplesmente, se a discriminação racial
nunca mais fosse lembrada, poderia acabar e se dissolver no ar.
Descobri
que não é bem desse jeito.
Elas
viraram para mim e, em um rompante, disseram mais ou menos assim:
-
não, não devemos deixar para lá. Temos de falar o que acontece. E
as outras pessoas devem nos ajudar e devem ir de encontro ao
comportamento racista.
Embora
um pouco sem graça, resolvi não me defender e apenas as ouvi. Uma
outra moça também de pele negra se manifestou e apoiou a maneira de
se revoltar dos jovens, do uso dos cabelos soltos, do orgulho de ser
negro. O que eu também apoio. Eu pensei, mas não disse. Não
consegui dizer.
Por
fim, perguntei a respeito do que tinham escrito no livro. Uma delas
contou sobre um passeio que fez com conhecidos em uma fazenda do Vale
do Café. Ao visitarem a senzala, existia uma representação bem
real, em cera, de negros presos e acorrentados, como se estivessem
mesmo sangrando, em tamanho natural. Ela disse: doeu na pele! E ainda
acrescentou que um menino negro, visitante, começou a chorar. A
partir desse relato, ainda contaram mais um bocado das histórias de
discriminação.
Alguns
exemplos de outros países foram lembrados, em que as pessoas têm
vergonha do acontecido, como o holocausto, na Alemanha, por exemplo.
Aqui, no Brasil, parece que uma parte da população orgulha-se da
escravidão e do que aconteceu naquelas épocas. Fora ofensas,
ironias e comentários desagradáveis de alguns.
Pois
é, naquela hora, um silêncio se instalou em mim, fez-me refletir
mais ainda sobre a discriminação racial e de qualquer outro tipo.
Aprendi que não basta só não pensar como pessoas racistas, é
preciso agir. É necessário combater essa prática tão presente em
nosso país. Reagir e dizer que sinto vergonha daquele comportamento
de época, e repudiar de modo veemente atitudes ainda tão cruéis e
semelhantes da nossa sociedade atual.
Recentemente,
já modificada por aquela conversa, fui visitar uma cidade do Vale do
Café: Vassouras. Estou fazendo uma espécie de tour
particular em algumas dessas cidades. Eliminei as imersões às
fazendas de café. Não me interesso mais por lugares de luxo e
riqueza que existiam e se desenvolviam por intermédio de exploração,
sofrimento e humilhação.
O
livro Negras
Crônicas
foi escrito por mulheres negras e revelou talentos. Algumas histórias
chegam a enojar de tão deprimente que é o ser humano sem noção de
nossa pequenez. Mulheres fortes e trabalhadoras, estudiosas, mães,
filhas, tão iguais a todas nós. Vale a pena ler para conhecer as
escritoras e também sentir vergonha de fazer parte de uma sociedade
tão ridícula e sórdida, nesses aspectos.
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